Criancei

Livro “Nossas estórias” – Escola Santa Amélia

 

Como salvar os animais do mar? Ao relembrar a frase, sorrio. Afinal, foi esta a minha primeira redação, a minha primeira experiência com a escrita – pelo menos a que me lembro. Não era um texto grande, tinha exatamente nove linhas. Na verdade, oito linhas e uma palavra. Junto com o texto, um desenho feito por mim. Não era bonito. Tudo estava no livro “Nossas Estórias”, da minha turma da Alfabetização. Página 46. Tinha seis anos.

Sem nenhum talento artístico, desenhei algo que nada se parecia com uma baleia. Do outro lado, alguns rabiscos se transformaram em um mar com um monte de lixo. A minha árvore? Ah, ela foi desenhada a partir de duas curvas opostas e um círculo quase completo. Niemeyer que se cuidasse. Também desenhei um jarrinho com três flores. Não tinha chão, tudo voava. O desenho realmente não ficou bom, o que justifica o fato de não ser selecionado para ser a capa do livro.  Foi o de outra menina, merecido.

O texto também não era muito bom, embora o tema fosse – e continua atual. De acordo com a Sociedade Mundial de Proteção Animal, por ano, entre 57 mil e 135 mil animais marinhos, dados de 2012, são afetados pelo lixo que é jogado ao mar pelo homem.

Não lembro como escolhi o tema, mas até hoje acho interessante.  Por outro lado, se o tema era bom, a falta de pontuação era melhor ainda. Ponto final, só um: o último. Também não tinha vírgulas, muito menos exclamação e interrogação. Mas uma coisa tinha: uma menina de seis anos defendendo a natureza e implorando que o lixo não fosse jogado no mar. “(…) Não jogue nada na agua porque os animais morem não jogue nada por favor” (sic).

Eu tinha seis anos, mas escrever aquele texto me fez sentir gente grande. Ao ver as cartinhas antigas, daquelas do dia das mães, percebi que era minha irmã mais velha quem escrevia. À mim, restava assinar. Só “Karine”. Só o primeiro nome. Nem “Karine Amorim”. Depois, a escrita me transbordava e passou a querer manter-se viva pelas minhas próprias mãos. Aos seis anos, eu pude gerar vida. Claro, que não aquela vida que nasce e vem ao mundo depois de nove meses. No meu caso, a vida nasceu e se fez eterna ao ser impressa e publicada naquele livro.

Aos seis anos, perguntei como os animais do mar poderiam ser salvos e, como resposta, obtive a minha própria salvação. A salvação, nem sempre, é bonita. Às vezes, é preciso furar o peito para ver se sai água – ou sangue. Às vezes, é preciso morrer para viver. Às vezes, a gente morre. Às vezes, a gente vive. Outras vezes, a gente vive-morrendo.  Às vezes, a gente não quer ser salva. Na escrita, sofri. Na escrita, alegrei. Da escrita, fiz vida, vivida. Talvez não faça sentido. Mas quem disse que precisa?

Aos 12, não lembro de escrever mais, só o obrigatório pela escola.  Não sei se perdi o gosto pela escrita ou ela desistiu de mim. Anos passaram. Aos 14, uma agenda me faz recordar que passei a gostar de poesias, não as criava, só copiava. Na verdade, eram trechinhos de mensagens românticas. Estava crescendo no corpo e criançando na escrita. Já não costumava escrever.

Criancei no ensino médio.

Entre 16 e 18 anos, não gostava de redação. Odiava. Fazia na obrigação do nascimento. Traumatizei com o “Arranque uma folha. Mínino de 20 linhas e máximo de 30. Coloquem título”. Tudo era muito chato. O nascimento não era normal. Era violento.

Mas, como disse, as coisas não precisam fazer sentido.

Aos 19, já como aspirante à repórter, redescobri a beleza da escrita. Da vida. Não só a minha, mas a de outras pessoas. Lembro dos perrengues, das horas de espera em uma pauta, mas também do cuidado de um morador ao alertar “Minha Filha, não vá mais pra lá não que é arriscado você cair ladeira abaixo”, durante uma pauta sobre o deslizamento de barreiras, no período chuvoso, na periferia de Maceió.

“Minha filha”. Que tola fui. Não era eu quem havia feito nascer a escrita. Na verdade, eu que fui nascida dela. Eu era filha. Eu sou.

Fui nascida pela escrita. Aprendi um jeito novo de nascer. E não é pela obrigação. Hoje, também optei pelas Letras. Fui nascida novamente. Nascida diariamente. Salva segundamente. Se aos seis anos, achava que já era gente grande, quase vinte anos depois, percebo que não sou grande gente. Sou criança e dependente. Da vida; da escrita. Fome de gente.

Aos seis, a escrita me fazia sentir gente grande.

Com quase vinte e seis, não sei.

Criancei.

Karine Amorim, 6 anos - Livro "Nossas Estórias" - Escola Santa Amélia
Karine Amorim, 6 anos – Livro “Nossas Estórias” – Escola Santa Amélia

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